segunda-feira, 28 de março de 2011

Arquivos do Terror

 

Os Arquivos do Terror

Há quase vinte anos, o Paraguai descobria o maior acervo documental de uma ditadura militar na América do Sul. Saiba com foi esta descoberta e o que ela representa 

O Café História encerra com este artigo a série "Ditaduras Militares na América do Sul", publicada ao longo do mês de fevereiro de 2011. O especial contou não apenas com a publicação de artigos, mas também com a abertura de fóruns, sugestão de grupos de estudos, publicação de vídeos e uma palestra online e ao vivo com o historiador Carlos Fico, que abordou o tema da "Operação Brother Sam".

A última parte deste especial, que você acompanha a seguir, discute o chamado "Arquivo do Terror", nome dado aos arquivos da repressão da ditadura de Alfredo Stroessner, no Paraguai, encontrados em 1992. Símbolo positivo da transição democrática paraguaia, o "Arquivo do Terror" é um patrimônio político, histórico e jurídico e que muito significa para os recentes avanços democráticos na América do Sul. Confira a matéria e continue participando das discussões sobre o assunto.

Um achado histórico

Era uma manhã do dia 22 de dezembro quando o juiz José Agustín Fernandez, investido de seus poderes, ordenou a abertura de uma dependência policial localizada em Lambaré, cidade a 20 quilômetros de Assunção, capital do Paraguai. O juiz Fernandez estava ali para fazer cumprir a lei “habeas data”, solicitada pelo advogado Martín Almada, desejoso de saber detalhes sobre a morte de sua esposa, a educadora Celestina Perez, e das acusações que o colocaram preso entre 1974 e 1977. O habeas data assegura o direito de toda pessoa ter acesso a informação e aos dados sobre si mesma. Para espanto dos presentes, porém, quando a porta da dependência policial de Lambaré foi aberta, não foi apenas o habeas data de Almada que seria contemplado, mas o de milhares de pessoas. Naquele lugar estavam empilhados, do chão ao teto, milhares de papéis,cadernos, fichas, dossiês e outros documentos oficiais produzidos pelas autoridades paraguaias ao longo de mais de três décadas de ditadura militar no país. Em pouco tempo o lugar se encheu de jornalistas, fotógrafos e curiosos de todos os cantos que, incrédulos, encaravam aquilo que, em alguns dias, ficaria conhecido no Paraguai e no mundo inteiro como “Os Arquivos do Terror”.

A descoberta não havia sido acidental. Alguns dias antes, depois de tentativas frustradas de Almada em descobrir informações pessoais (e que a Polícia dizia desconhecer), o advogado recebeu o telefonema de uma mulher, esposa de um policial. Ela contou a Almada onde estavam seus arquivos e este, por sua vez, pediu a intervenção do juiz Fernandes, que cuidava de seu pedido. O desfecho foi o achado histórico em Lambaré, que rapidamente se transformou em um espetáculo midiático e comoveu o país.

E não era para menos. O conjunto de documentos encontrados naquela dependência tinha um valor inestimável: havia ali, por exemplo, fichas policiais que as autoridades paraguaias negavam ou juravam desconhecer, uma quantidade interminável de documentos que em breve ajudariam a colocar muitas pessoas na prisão e traria alívio a famílias inteiras.

Depois de alguns anos de trabalho, os arquivos foram cuidados e organizados. No total, a população paraguaia tinha em mãos 320 mil documentos, fotos e registros recolhidos ao longo dos 35 anos da ditadura do general Alfredo Stroessner. São fichas policiais, listas de entradas e saídas de presos, notas do chefe de investigações, informes confidenciais, controle de partidos políticos, publicações periódicas, listas de suspeitos, informações sobre agremiações e grupos considerados subversivos, controle de sindicatos e objetos como livros e cédulas de identidade. Os investigadores, então, de posse do novo material, fizeram vários estudos e descobertas na última década. Uma das mais importantes foi a comprovação da chamada Operação Condor, que durante muito tempo não passou de uma suspeita dos historiadores. Em síntese, a Operação Condor era a aliança político-militar estabelecida a partir da década de 1970 entre regimes militares da América do Sul, mais especificamente de Brasil, Argentina, Chile, Bolívia, Paraguai e Uruguai. Os arquivos encontrados no Paraguai comprovavam a ligação entre os regimes autoritários na investigação de organizações e pessoas que ultrapassavam mais de uma fronteira.

Um país com suas peculiaridades

Os “Arquivos do Terror” representam hoje o maior acervo documental de uma ditadura na América do Sul. Ao contrário de outros países, que ainda engatinham quando o assunto é a abertura dos “arquivos sensíveis”, o Paraguai possui a quase totalidade dos documentos produzidos pela ditadura. Quase nada foi destruído, mesmo após o fim da ditadura de Stroessner e o período da transição democrática. Talvez pelo fato de a polícia acreditar que eles ainda pudessem ser valiosos no futuro. No entanto, para se compreender esta particularidade do Paraguai em relação aos outros países sul-americanos no tocante aos arquivos da ditadura é preciso conhecer as peculiaridades que a ditadura paraguaia em geral possui em relação as suas “co-irmãs dos trópicos”.

O jornalista, médico e pesquisador Alfredo Boccia Paz, em seu revelador artigo “Los Archivos del horror” del Paraguay: los papelos que resignificaram La memória del stronismo” (Ditadura e Democracia na América Latina, FGV e UFRJ, 2005) ajuda a desvendar que Paraguai é esse. Para Paz, o país possui três singularidades. A primeira diz respeito ao começo da ditadura de Strossner, em 1954, ou seja, muitos anos antes das ditaduras nos demais países do continente, e também ao seu término, em 1989, depois de quase todas as outras ditaduras sul-americanas, com exceção do Chile (1990). A segunda singularidade seria o fato de a ditadura de Stroessner simplesmente ter sucedido outros regimes autoritários que a precederam. A sociedade paraguaia vinha de um longo tempo sem instituições democráticas consolidadas, o que produzia, conta Paz, uma baixa participação cívica nos assuntos políticos do país. Já a terceira característica ressaltada pelo jornalista, articulista do jornal paraguaio “Ultima Hora”, é a fachada institucional que Strossner mantinha, uma aparente normalidade democrática, haja vista que a ditadura no Paraguai, embora tivesse à sua frente um militar personalista, sempre foi candidato e contou com o apoio basilar do Partido Colorado.

Paz lembra também que não foi apenas a pressão popular que terminou com a ditadura de Strossner, mas sim um golpe de estado comandado por um outro militar, o general Andrés Rodrígues, um dos homens fortes do regime. Assim, embora Strossner tivesse sido deposto (vindo a exilar-se em Brasília, onde morou até morrer, em 2006), o sistema político no Paraguai não havia mudado. O Partido Colorado continuva forte, emplacando seus candidatos, como se nada houvesse acontecido. Neste sentido, fica mais fácil compreender porque os arquivos da ditadura não foram eliminados.

Acesso livre

Felizmente, a descoberta dos “Arquivos do Terror” ajudaram a mudar a mentalidade política dos paraguaios, que passaram a ter provas irrefutáveis de 35 anos de regresso político, de tortura, censura, vigilância e abusos de autoridade. Eles ajudaram a colocar na cadeia várias pessoas, desmistificaram Strossner e revelaram um lado do Paraguai que muitos consideravam falso ou, pelo menos, exagerado. Hoje, os arquivos encontrados em 1992 estão abertos a todos os paraguaios, bem organizados, protegidos e, nos últimos anos, acessíveis também a quase todos no mundo. Isso, porque, em 2007, boa parte dos 320 mil documentos do acervo foi digitalizado e colocado disponibilizado na internet, através do site http://www.aladin0.wrlc.org/gsdl/collect/terror/terror_s.shtml. A iniciativa é resultado de um acordo entre o Arquivo de Segurança Nacional, um dos centros de documentação histórica mais importantes e ativos dos EUA, o Centro de Documentação e Arquivo para a Defesa dos Direitos Humanos (CDyA, na sigla em espanhol) da Suprema Corte do Paraguai e a Universidade Católica de Assunção.
Ao todo são mais de 60.000 documentos que ajudam a contar uma parte importante da história do Paraguai e também dos trágicos caminhos que América do Sul tomou no vertiginoso século XX. Acesse e confira você mesmo essa história.

Fonte Café História

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